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Biossimilares e o cordel regulatório

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Biossimilares já são uma realidade. Estão disponíveis em muitos mercados altamente regulamentados e, em alguns países, a quota de mercado para os produtos biossimilares já ultrapassa a do produto inovador (1). O alto custo dos medicamentos, especialmente dos biológicos, é uma questão importante para os sistemas de saúde. A média de gasto diário nos EUA com produtos biológicos é de U$ 45 por paciente, comparado com os U$ 2 para os medicamentos de síntese química (2). E a medida que se desenvolvem novos medicamentos, este custo tende a subir. No Brasil; segundo dados do Ministério da Saúde, a aquisição de medicamentos biológicos consomem cerca de 43% do orçamento do Ministério da Saúde (MS) do total previsto com a aquisição de remédios, apesar de representar apenas 5% em número de medicamentos comprados (3).

Os medicamentos genéricos podem ser introduzidos no mercado a baixo custo no momento em que a patente de fármacos inovadores expira. Para esse processo, são necessários testes que demonstrem a segurança e eficácia do produto genérico, processo que simplifica a sua aprovação nas agências regulatórias. Entretanto, essa rota não pode ser aplicada aos biossimilares. Por serem moléculas mais complexas e de difícil caracterização, pequenas alterações no processo de produção podem provocar alterações nas propriedades biológicas e clínicas do produto, o que pode alterar os perfis de eficácia e segurança do biossimilar (4). Não sendo possível demonstrar a identidade entre os biofármacos, eles carecem de regulamentação específica.

Diante deste cenário, agências regulatórias de todo o mundo vem debatendo este assunto desde meados de 2005, quando a agência europeia de regulamentação de medicamentos, a EMEA (sigla para European Medicine Agency), pioneira neste dialogo, lançou as primeiras diretrizes para aprovação dos biossimilares (5), definindo o termo “biossimilar” como "um medicamento biológico que é semelhante em termos de qualidade, segurança e eficácia a outro que já tenha sido autorizado para uso". A legislação brasileira, mais recente, lançou sua primeira diretriz em 2010 (6), bastante influenciada pelas diretrizes da Organização Mundial da Saúde a WHO (World Heathy Organization), que data de 2009 (7). Já a agência americana, o FDA, lançou suas bases somente em 2012 (8), após intensos debates no congresso, levando em consideração o dialogo entre os que defendiam os interesses dos potenciais produtores de biossimilares e os que defendiam os interesses da indústria de medicamentos pioneiros (9).

A legislação europeia organiza suas diretrizes em uma base construída sobre fortes fundamentos científicos, de qualidade e segurança, e estabelece uma estrutura regulatória que inclui diretrizes gerais, complementares (especificas para cada categoria de produtos) e de avaliação da imunogenicidade. Assim, para o registro de um biossimilar na UE, a agência europeia indica um exercício de comparabilidade, que consiste numa comparação passo a passo em termos de qualidade, segurança e eficácia suficientes para demonstrar que o biossimilar e o produto de referência apresentam perfis similares nestes aspectos. E, caso os similares não permitam a demonstração da semelhança, estudos suplementares como o perfil toxicológico e clínico devem ser fornecidos, considerando-se as características específicas de cada medicamento. No caso de o medicamento de referência ter mais de uma indicação terapêutica, a eficácia e a segurança do biossimilar devem ser demonstradas separadamente para cada uma das indicações requeridas. Na agência europeia, cada categoria de biofármaco (hormônio, proteína, anticorpo monoclonal, fator sanguíneo, etc.) possui diretrizes especificas, com instruções sobre os dados clínicos e não-clínicos, descrevendo o tamanho dos ensaios necessários e a melhor indicação para demonstrar equivalência de cada item, em comparação com um produto de referência (5). Para a avaliação de imunogenicidade, a diretriz indica estudos dos fatores que podem provocá-la, do desenvolvimento, planejamento e interpretação de ensaios clínicos e não-clínicos e como avaliar o potencial de imunogenicidade e sua comparabilidade com outros produtos, além de indicar os aspectos a serem contemplados para implantação de um plano de gerenciamento de riscos.

Nos EUA, a base legal para licenciamento de biossimilares é mais recente e resulta de intensos debates no congresso entre os que defendiam os interesses dos potenciais produtores de biossimilares (mais flexíveis) e projetos mais favoráveis à indústria de medicamentos pioneiros (menos flexíveis), especialmente quanto às exigências das diretrizes, como por exemplo o formato dos ensaios clínicos e os períodos de exclusividade, entre outros. O Biologics Price Competition and Innovation Act (BPCI Act), aprovado no âmbito do Patient Protection and Affordable Care Act (PPACA), são as leis em que se baseiam as diretrizes para o licenciamento de biossimilares nos EUA (10). Os ensaios clínicos exigidos em lei são poucos, pequenas variações são aceitas, e o poder de aprovação está essencialmente concentrado no FDA, além de sugerir um período de exclusividade de mercado maior para os inovadores. Determina ainda que o FDA deverá inspecionar as instalações nas quais os biossimilares estarão sendo produzidos. Para o FDA, um biossimilar é um produto biológico altamente semelhante a um produto biológico já aprovado, apesar de pequenas diferenças em componentes clinicamente inativos, e para o qual não há diferenças clinicamente significativas entre o biossimilar e o produto biológico aprovado em termos de segurança, pureza e potência. O órgão entende que não há produtos biológicos genéricos e dados de eficácia clínica e segurança devem ser apresentados (11).

A regulamentação brasileira é mais generalista e simplificada que os casos americano e europeu. No que diz respeito à segurança e eficácia, a ANVISA exige, além dos ensaios clínicos, estudos de imunogenicidade, farmacovigilância e plano de gerenciamento de risco, mas não determina como devem ser planejados ou conduzidos. Aspectos como a dificuldade de se comprovar a identidade destes produtos em relação aos produtos de referência; a extensão e natureza dos dados clínicos e pré-clínicos necessários, características do produto, a capacidade de caracterizá-lo com as técnicas analíticas atuais, avaliação da imunogenicidade, validação dos ensaios de comparabilidade, questões de nomenclatura, rotulagem e intercambialidade, ainda são pontos pouco aprofundados da legislação brasileira. Entretanto, esta claro que o produto biológico comparador deve ser um produto registrado na ANVISA, cujo registro tenha sido embasado por um dossiê completo, devendo ser utilizado, em todas as etapas no processo de comparação (12).

Apesar das agências estarem em estágios diferentes de definição e desenvolvimento (ou estabelecimento) de sua estrutura regulatória para os biossimilares, é possível identificar aspectos em comum entre elas. A análise comparativa entre o produto similar e o de referência, e estudos analíticos extensivos e integrais, passo-a-passo, quando se identificam potenciais diferenças entre os medicamentos são itens que devem ser contemplados no dossiê no momento em que se solicita o registro de um biossimilar em todas as agências. Estes aspectos são, em geral, orientados pela OMS, porém as particularidades de cada mercado e necessidade regional devem ser considerados pela agência local.

No que diz respeito a demonstração da similaridade, apesar da visão mais comum ser a de que estudos comparativos são essenciais para demonstração da semelhança, não há consenso em  relação à extensão e em que situações seriam necessários. A quantidade e os tipos de pesquisa a ser feita depende de vários fatores, inclusive do mecanismo de ação do medicamento. Proteínas menores e não glicosiladas (como insulinas, somatropina) são mais fáceis de serem completamente caracterizadas, enquanto proteínas altamente glicosiladas (como a epoetina) ou muito grandes (como os anticorpos monoclonais e fatores sanguíneos) geralmente não podem ser completamente caracterizadas. (13)

Em relação a escolha do produto de referência, em geral, espera-se que o produto de referência seja um medicamento registrado localmente. Entretanto, considera-se como uma possibilidade o registro de um biossimilar em um país no qual o produto de referência não esteja licenciado, ponto em que aumentaria as oportunidades de acesso a medicamentos biológicos inovadores tanto quanto facilitaria a entrada de biofármacos.

O ponto crucial de todas as diretrizes é a imunogenicidade. Todos os biofármacos, pioneiros ou não, apresentam a capacidade de provocar uma reação imunológica. Esta reação pode ser leve, porém existe potencial para a ocorrência de alergia e anafilaxia. Além disso, o desenvolvimento de anticorpos capazes de neutralizar a proteína terapêutica, causando perda ou diminuição da eficácia do remédio pode não ser provocado pela biomolécula em si, mas pelos componentes adjuvantes associados a produção, a estocagem ou a manutenção da estrutura do biofármaco, ou ainda por fatores relacionados ao tratamento e ao paciente, como vias de administração, doença de base e outras patologias associadas a doença (14). Por exemplo, a PRCA (pure red cell aplasia), causada pelo desenvolvimento de anticorpos neutralizantes contra a eritropoietina recombinante, usada para para tratamento da anemia provocada pela insuficiência renal, foi detectada 10 anos após a introdução do medicamento no mercado. A causa provável esta na modificação da formulação. Além disso, a substituição da albumina humana por polisorbato 80, por instrução das agências reguladoras, pode provocar uma reação do medicamento com a borracha da seringa. Após a mudança das borrachas e mudança da via de administração, o PRCA praticamente desapareceu ( 14). A única maneira de se medir a resposta imune contra uma droga é através de estudos clínicos de fase 4, sendo de alta relevância também um plano de farmacovigilância para cada biológico que entra no mercado.

Uma questão bastante controversa é a substituição automática. Para os medicamentos de síntese química é possível substituir a medicação prescrita pela genérica sem  a necessidade do conhecimento ou do consentimento do médico, e neste caso o risco desta substituição é, geralmente, baixo ( 18). Entretanto, se a substituição automática for possível para os medicamentos biológicos, os pacientes poderão receber múltiplos biofármacos durante a terapia, o que pode ser um fator de confusão no momento de coletar informações para os estudos de farmacovigilância, ponto essencial para o monitoramento da segurança de determinado produto. Vale ressaltar que alguns países europeus, como França, Alemanha e Espanha, proibiram a substituição automática dos medicamentos biológicos de referência por biossimilares, entretanto nos EUA, a substituição automática pode acontecer.

As questões regulatórias envolvendo a aprovação e uso de biossimilares ainda está em processo de definição em muitos países, inclusive no Brasil. A partir da análise europeia e americana das leis e diretrizes a discussão vai além da questão farmacêutica e de saúde, como segurança e eficácia, e abrange aspectos econômicos do investimento na produção de biossimilares, justificada pela necessidade de se incentivar e promover a inovação. Estas questões ainda não foram plenamente contempladas pela regulamentação brasileira, o que pode trazer insegurança aos produtores interessados neste mercado. O grande desafio para os órgãos reguladores será lidar com os riscos e benefícios inerentes aos biossimilares, e ao mesmo tempo não introduzir barreiras excessivas ao seu desenvolvimento e aprovação, para promover a produção nacional e um maior acesso da população a produtos seguros e eficazes.

23/03/2015
Georgia Porto - Equipe Biotec AHG